Ontem (terça-feira, 18/01), a Gazeta do Povo deu continuidade à série de reportagens que intituou “Dossiê Battisti”. Continuou na mesma linha: uma matéria de página inteira tendo como fontes principais parentes de supostas vítimas de Battisti, reforçada por um editorial que não deixa margem de dúvida quanto à posição prévia do jornal contra Battisti. O título da matéria já indica que o jornal tomo como fato comprovado que Battisti matou civis: “Vítimas civis de Battisti foram mortas por reagir a roubos”. O curioso é que a própria reportagem relata que os processos contra Battisti parecem não ter sido tão corretos: ele foi condendo por dois assassinatos simultâneos ocorridos em cidades diferentes, distantes 260 quilômetros.
Hoje, afinal, apareceu uma matéria em que foi ouvido o outro lado: parentes de Battisti, que, logicamente, o defenderam. Obviamente, a palavra de parentes do acusado tem tanto valor quanto à dos parentes das vítimas, já que a repórter não recorre a outras fontes (por exemplo, documentos e especialistas neutros). Mas o jornal cuida para que elas não tenham o mesmo peso.
Uma das técnicas jornalística empregadas para dar mais peso a um lado ou outro é a edição – recurso que os jornais utilizam para favorecer o lado que escolheram. Isso fica muito claro nos títulos das matérias. Se a primeira matéria tinha como título, entre aspas, a declaração de um familiar de uma das vítimas (“Um delinquente da pior espécie”), a matéria com a versão dos parentes de Battisti tem por título: “Uma família contra um país”. O contraste dos títulos já revela a parcialidade do veículo.
Ademais, embora ouça “o outro lado”, o texto da matéria procura desqualificar os depoimentos pró-Battisti. Além do título, isso está em alguns trechos do texto, como este: “Eles estão contra um país inteiro. A família de Cesare Battisti, com o apoio de um círculo restrito de amigos e conhecidos, defende-o há 30 anos. E continua fazendo o mesmo agora.”
A matéria usa outro recurso pouco recomendável jornalisticamente para desqualificar os depoimentos favoráveis a Battisti: as generalizações, feitas sem qualquer dado comprobatório. Por exemplo: “…o clamor da opinião pública italiana, amplamente favorável à extradição de Battisti…” e “Para a maioria dos italianos de hoje, esses grupos apenas impunham o terror e queriam derrubar um governo eleito democraticamente”.
Como um jornalista pode saber exatamente o que pensa “a maioria dos italianos de hoje”? Será que a repórter é vidente? Nenhuma pesquisa de opinião é citada. Do mesmo modo, poder-se-ia afirmar que a grande maioria dos brasileiros de hoje é contrária à extradição de Battisti. Isso não é jornalismo – e estou certo de que os professores de jornalismo (eu entre eles) alertam os alunos quanto a isso. Não se pode generalizar sem dados comprobatórios.
Numa segunda retranca (matéria conexa, na mesma página), assinada pela agência Estado, informa-se que o Senado italiano aprovou por unanimidade moção pedindo que Berlusconi não meça esforços pela extradição de Battisti. Uma pérola do texto: “O ato, de caráter simbólico, mostra o grau de unidade da opinião pública italiana em torno do tema”. É para rir? Então, se os nossos 81 senadores brasileiros aprovarem uma moção por unanimidade, sobre qualquer tema, poderíamos deduzir que eles estariam assim indicando a unidade da opinião pública brasileira? Só rindo, mesmo.
Os senadores italianos também cometem o erro da generalização, explicitamente, ao afirmarem, na moção aprovada, que a opinião pública italiana “sem exceção, está surpresa e indignada com a recusa da extradição”. A opinião pública, sem exceção! Talvez os defensores de Battisti não façam parte da “opinião pública”… Parece que os políticos italianos são tão oportunistas quanto os de outros lugares que bem conhecemos…
Repito: talvez Battisti seja mesmo um assassino comum. Mas não é isso que está em jogo. É a qualidade do jornalismo que escolhe previamente um lado. Se não houvesse controvérsias fortes quanto ao caso, por que o STF teria recomendado a extradição por uma margem tão apertada? O resultado da votação foi 4×3, o que indica que a questão não é assim tão simples.
Mas a mídia precisa de culpados. O filme é antigo. Os donos da Escola Base, a família Nardoni e tantos outros são exemplos claros de que não importa apurar dados concretos e informar com honestidade, isenção e imparcialidade, dando igual destaque a todos os lados envolvidos. O importante é achar um culpado e saciar a sede de sangue de leitores e telespectadores. Assim, a mídia cumpre uma função simbólica de pacificação social, na medida em que a opinião pública pode sentir que, havendo um crime, o “culpado” logo será encontrado e condenado.