Língua Portuguesa e seu uso: quem define o que é “correto”?

Língua Portuguesa e seu uso: quem define o que é “correto”?

O objetivo do uso da língua

O objetivo da língua é a comunicação. Aprendemos desde cedo a nos comunicarmos utilizando determinada língua, que é também fundamental para a estruturação de nosso pensamento e a formação da nossa visão de mundo.

A língua utilizada para comunicação entre os brasileiros é a Portuguesa, que se tornou língua oficial da colônia por ordem do Marquês de Pombal, então primeiro ministro de Portugal, em 1758.  A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu art. 13 que “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”, ressalvando, entretanto, que será “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” no ensino fundamental regular (§ 2º do art. 210).

A Língua Portuguesa é aquela utilizada pelos países que se identificam como usuários dela. Existe uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – aqueles que identificam a si mesmos como parte dessa comunidade –, que tem buscado uniformizar sua utilização na modalidade culta formal.

Uma vez que o uso da língua é a comunicação, para que alguém se identifique como usuário dela, basta que a utilize como instrumento de comunicação. Uma pessoa que jamais frequentou a escola é perfeitamente capaz de comunicar-se em português. Um analfabeto consegue comunicar-se na sua língua materna. Se, numa conversa com um compatriota, um brasileiro disser: “Nóis fumu lá onte”, certamente será entendido tanto quanto se disser “Nós fomos lá ontem”. Entretanto, é possível que se comunique de um modo que seja considerado “errado” por algumas pessoas. Quem poderá atestar que uma forma é “correta” e outra não? Embora haja diferentes “falares”, diversos modos de se comunicar empregando a Língua Portuguesa, alguns são considerados inadequados (ou “errados”) conforme as circunstâncias. Se na redação de um concurso público, por exemplo, alguém escrever “Nóis fumu lá onte”, certamente perderá pontos. Por que é considerada “correta” apenas a “modalidade culta formal”?

Quem define o “uso correto”?

A língua é uma instância de poder. O domínio de determinada modalidade da língua, aquela considerada o “padrão culto formal”, concede poder e prestígio. A determinação das regras dessa modalidade parte da elite dominante, que estabelece um padrão considerado “correto” – fundado especialmente no uso da língua escrita na literatura –, em contraposição a muitos usos efetivamente eficazes na comunicação cotidiana, mas taxados como “incorretos”, ainda que cumpram perfeitamente a função básica da língua (a comunicação).

Quem diz qual é o “português correto” no Brasil? Juridicamente falando, há algumas normas legais que estabelecem padrões. Em termos de ortografia, o Decreto Nº 6.583, de 29 de setembro de 2008, que “promulga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990”, estabelece regras oficiais para a ortografia no país. Tal decreto cita como instância importante para o estabelecimento dos acordos ortográficos entre os países de Língua Portuguesa a Academia Brasileira de Letras (ABL). Efetivamente, o art. 1º. do Decreto 6.583 menciona a colaboração da ABL para a elaboração de um vocabulário ortográfico comum da Língua Portuguesa. Portanto, embora seja entidade privada, a ABL tem reconhecimento oficial para elaboração desse vocabulário ortográfico. Pode-se então dizer que a grafia correta das palavras em língua portuguesa no Brasil é a que está consignada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa elaborado pela ABL.

Há ainda outra instituição importante que constitui foro oficializado para algumas questões relacionadas ao uso da Língua Portuguesa: a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Embora seja também uma entidade privada, alguns dispositivos legais brasileiros a indicam como definidora de normas e padrões técnicos. Especificamente quanto à redação de textos científicos, a ABNT elabora diversas normas e é reconhecida como entidade capacitada para definir tais normas, mesmo quando de uso não obrigatório do ponto de vista legal.

E quanto à sintaxe e todas as demais regras sobre o uso “correto” da língua? Não há uma definição legal oficial. Considera-se a norma “correta” aquela consignada pelos gramáticos, que as definem a partir da observação do emprego da língua – tomando em conta principalmente o uso na literatura escrita por autores consagrados.

Um campo de divergências

A gramática normativa, que estabelece as normas do uso “correto” do idioma na modalidade escrita, está nos compêndios de gramática, escritos por estudiosos da língua. Tais compêndios baseiam-se no uso corrente, na origem e no desenvolvimento histórico da língua, em determinadas relações lógicas etc. Entretanto, como não existe uma “gramática oficial”, há inúmeras divergências entre esses estudiosos. Alguns podem ser considerados mais “conservadores”, atendo-se ao uso da língua pelos escritores consagrados (em geral, utilizam exemplo apenas de escritores já falecidos), enquanto outros são mais abertos às novidades da língua – que surgem no uso cotidiano –, aceitando tendências que aos poucos vão se impondo.

Em muitas questões, as regras a serem utilizadas em determinada situação dependerão também do estilo. Um bom exemplo é o uso da vírgula, tema cujas regras variam bastante entre as diferentes visões dos gramáticos. O emprego da vírgula deve reger-se por questões de clareza e eufonia. Em muitos casos nos quais sua utilização é facultativa, a decisão se dará por escolha estilística. Nesse caso, a classificação do uso como “correto” está também no âmbito dos estudiosos de estilística e não apenas na gramática normativa. O uso exagerado de vírgulas diminui a fluidez da leitura, enquanto a falta delas poderá gerar textos com problemas de clareza. Por exemplo, nas frases seguintes:

– “Haverá, ainda, uma palestra de encerramento” – embora o emprego da vírgula, de acordo com muitos gramáticos, seja facultativo nesse caso, trata-se de um bom exemplo para indicar o quanto as vírgulas desnecessárias prejudicam a fluidez textual. Essa construção fica melhor sem as vírgulas.

– “O homem que fugiu era o assassino” ou “O homem, que fugiu, era o assassino” – nesses casos, o uso ou não da vírgula altera o sentido da frase, que deverá ter ou não vírgulas conforme o significado atribuído, para clareza do texto.

No campo semântico, há incontáveis casos de emprego de vocábulos antes considerados como impropriedade vocabular que acabam sendo aceitos pelos estudiosos da língua. Por exemplo, a palavra “abordar”, como empregada nesta frase: “O palestrante abordou o tema em profundidade”. “Abordar” tem sentido original relacionado à navegação (“chegar a bordo”). Se estudiosos mais conservadores antigamente consideravam inadequado o uso em outro contexto, atualmente, a prática dos usuários da língua consagrou sua utilização com sentidos diversos do original.

Como definir um padrão?

Portanto, em um grande número de casos, há usos que os mais “puristas”, os mais “conservadores”, considerarão “incorretos”, enquanto outros aceitarão. No caso de uma instituição qualquer, pública ou privada (um jornal, uma empresa, um órgão público, por exemplo), que queira adotar na sua comunicação escrita determinado padrão, o mais adequado seria a eleição de um compêndio de gramática específico ou, dependendo do caso, até mesmo de um manual de redação jornalística já pronto. De qualquer forma, considerando-se o emprego da língua como questão de reputação e poder, o uso de um padrão mais “rigoroso” da língua em sua norma culta formal concede mais prestígio, visto que um texto dentro dos padrões formais mais rigorosos é “inatacável”, enquanto um mais “permissivo” poderá ser criticado pelos “puristas” da língua. Já no que diz respeito ao universo vocabular (virtualmente infinito), este deve estar adaptado ao nível do público que se deseja atingir.

Por fim, relembre-se: não existe, com exceção de algumas poucas áreas específicas, uma “definição oficial” do que seja correto ou não. A elite “letrada” usa a definição de “certo” e “errado” como instância de poder, com base em regras consignadas em compêndios de gramática (frequentemente divergentes em vários casos). Quem é capaz de indicar o que é mais ou menos adequado de acordo com a situação comunicacional e identificar o “certo” ou “errado” conforme o padrão culto formal são os estudiosos que se capacitaram acadêmica e profissionalmente para tanto.

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