A velha sede da fazenda era, para mim, algo emblemático da infância. O que chamávamos de “sede” era, na realidade, um conjunto de edificações que constituíam o núcleo em torno do qual girava toda a vida daquela fazenda de café de quase 200 alqueires.
No centro de tudo, estava a casa principal. Ainda hoje, tenho na memória aquele cheiro característico do velho casarão onde vivi boa parte de meus dias até mudar-me para a capital, aos 14 anos. Uma construção que, na minha infância, já devia ter uns 60 anos – casa curiosamente “híbrida”, pois fora, a princípio, levantada em madeira e, com o correr das décadas, foram-se-lhe acrescentando partes novas, reformando outras, numa mistura de materiais e estilos conforme as conveniências e possiblidades da família na época de cada ampliação. Afinal, já a conheci com poucas diferenças em relação ao que ela é hoje, constituindo na minha memória a figura una e única da “sede da fazenda”: no corpo principal – um retângulo perfeito – a parte anterior de tijolos, os fundos de madeira, as divisões internas idem – exceto os banheiros, todos em alvenaria.
Nessa parte, encontrava-se o meu quarto, com suas paredes de largas tábuas cujos vãos eram vedados com ripas. A tinta branca a óleo dava àquele ambiente rústico um ar de limpeza. Das paredes pendiam inúmeros quadros pendurados a intervalos regulares – janelas que me faziam entrar em outros mundos: o do passado, nas faces hirtas dos rijos antepassados ali fotografados; o da religião, no quadro do Sagrado Coração de Jesus, representado com ar mito doce e acolhedor na pintura que fora obra de uma tia.
Além das pictóricas “janelas”, alimentava minha imaginação infantil uma parte da casa que não se via: o sótão. Não um lugar ordenado e habitável entre o teto da casa e o telhado, como em algumas mansões, mas simplesmente o espaço escuro e misterioso ao qual só os mais velhos tinham acesso, e à custa de esforço, pois a única entrada para aquele mundo de sombras era um estreito alçapão no teto da sala principal, pelo qual, de vez em quando, meu avô subia com sacrifício, usando uma escada portátil, para verificar com a ajuda de uma lanterna as condições do telhado, ou da caixa d´água, ou da fiação elétrica (desde que havíamos abandonado os fedorentos lampiões a querosene, graças à chegada do progresso). O mistério do sótão era alimentado ainda mais pelo barulho dos passos de animais daninhos que constantemente por lá passeavam à noite: raposas e bambás, inimigos do ovos e pintainhos do galinheiro ,afincadamente combatidos por meu avô, como os gaviões que ele abatia com sua espingarda de cano longo e fino, sempre pendurada atrás da porta da cozinha.
Deliciosas eram as noites frescas em que nos divertíamos jogando baralho na sala principal, com sua pesada mesa de madeira maciça cercada de uma dezena de cadeiras negras com encostos e assentos em couro lavrado. O jogo era pretexto para conversas, ponteadas a cada quinze minutos pela cantiga sonolenta do antigo carrilhão que cantava britanicamente as horas.
Ligado à parte central da casa, havia o anexo mais recente, cujo piso estava num desnível de aproximadamente dez centímetros em relação à parte antiga: compunham-no a copa-cozinha nova, a despensa e mais um banheiro, tudo em alvenaria. Era o recanto prosaico da casa, também portador de boas recordações: os almoços fartamente servidos, com carnes, cereais e pães produzidos na própria fazenda, sem falar nas variadas sobremesas – especialmente as compotas de frutas – que hoje fariam horror aos citadinos preocupados com excessos de triglicerídeos.
Lembrança especial, para mim, é a geladeira velha, bem sortida, onde eu frequentemente buscava a leiteira com leite gordo e fresco, extraído sempre no mesmo dia pelas mãos hábeis do compadre Nino, que ordenhava as vacas ao nascer do sol. Vez ou outra, acordando antes de clarear, eu e meus irmãos passávamos pela cozinha, onde nossa avó havia preparado copos com dois dedos de conhaque que pegávamos, ainda de pijama, para completar com leite amarelo e quente, saído diretamente das tetas de uma vaca leiteira – sabor característico que nunca mais pude sentir.
Nos fundos da casa, dando para um galpão coberto, o fogão a lenha, que continuou a ser utilizado no preparo de certos quitutes – como a goiabada de tacho e as pamonhas – mesmo depois da chegada do fogão a gás na cozinha nova. O galpão me traz recordações especialmente gratas. Ali se reunia a família, completa, em dias de festança, quando a churrasqueira transformava o boi recém-abatido em saborosa carne assada na brasa. Ali também, perfilados nos longos bancos de tábua que ladeavam a mesa (uma prancha comprida sustentada em toscos cavaletes), nos entregávamos ao ritual da fabricação da pamonha. As espigas frescas do milho verde eram colocadas em enormes balaios de bambu numa das pontas da mesa e, ao chegaram à outra ponta, já eram pamonhas embaladas, prontas para irem ao fogo. Todas as mulheres e crianças participavam da produção em série. As crianças descascavam as espigas e lhes tiravam os cabelinhos, empregando palitos de dentes para arrancar de entre os grãos os fiozinhos mais renitentes que se agarravam nos sulcos da espiga. Quanto mais complexa a tarefa, maior era a idade dos executantes. Passava-se a matéria-prima de mão em mão, até que o grosso caldo verde chegasse às panelas de ferro, no outro extremo da mesa, onde as matronas da família se encarregavam do que eu imagina então ser o mais difícil: fazer uma bolsinha de palha de milho na qual derramavam, com uma concha, o precioso produto do trabalho – depois, numa arte que me parecia quase milagrosa, conseguiam dar um laço com a própria palha de milho naquele saquinho sem que o líquido denso escapasse. Aos homens adultos, cabia a fase de pré-produção: colher a matéria-prima – eles se encarregavam de prover os balaios com as melhores espigas.
Do outro lado da casa, o da fachada, e distante cerca de trinta metros, estava o terreiro de café, que se podia avistar da janela da copa-cozinha. Era na faixa entre o terreiro e a casa que se podia apreciar, todas as tardes, o exercício do senhorio naquela antiga. Ao cair da tarde, à medida que terminavam o serviço na lavoura, os empregados, um a um, carregando seus instrumentos de trabalho, iam se aproximando calmamente da janela alta onde se postava meu avô como se apenas contemplasse aquele largo horizonte que começava a avermelhar-se pelo pôr-do-sol. Era a hora da “bênção”, oportunidade em que cada um, cerca de um metro e meio abaixo do nível da janela, conversava com o patrão, tido por eles como um segundo pai. Prestavam contas do serviço do dia, contavam seus problemas, pediam conselhos. A bênção propriamente dita só era solicitada, e concedida, quando o empregado era afilhado do patrão, o que, aliás, acontecia com frequência.
Muitas lembranças mais guardo daquele ambiente que tanto marcou minha infância. A tulha, o lago, o riacho, a mata virgem, as casas dos colonos… Ao descrever esse mundo onde vivi boa parte dos meus primeiros anos, parece-me, ao mesmo tempo, que descrevo algo de mim mesmo. Na medida em que o homem é fruto do meio, posso dizer que minha formação e meu caráter estão de algum modo ligado àquela velha sede da fazenda. Mesmo tendo mudado muito, a ponto de olhar hoje o passado com olhos mais críticos, não há como desdenhar a importância daquele ambiente na minha constituição como pessoa.