Vamos fazer aqui uma simplificação bem compreensível sobre o tema (pensando em quem nunca estudou Semiótica ou fugiu das aulas)…
A comunicação é feita por meio de signos. Há signos de diferentes categorias. A linguagem falada, por exemplo, é um signo simbólico (arbitrário, convencional), que não tem relação direta e imediata com aquilo que representa.
Gestos também são signos utilizados na comunicação. A compreensão dos signos envolve maior ou menor ação do interpretante. Alguns signos (chamados icônicos), que têm relação direta com aquilo que representam (por exemplo, a foto de um gato como signo de um gato), exigem uma ação menor do interpretante (basta olhar a foto de um gato para imediatamente perceber que ela representa um gato). Já os signos simbólicos (que são convencionais e arbitrários) demandam uma ação maior do interpretante. Um exemplo: junte as pontas dos dedos polegar e indicador, formando um círculo, e levante os outros três dedos, separando-os: se você utilizar esse signo nos Estados Unidos, certamente será interpretado como “OK” – uma coisa boa, um sinal positivo; entretanto, se isso for feito no Brasil, será interpretado como uma ofensa. Isso se deve à arbitrariedade do signo simbólico: em uma determinada cultura, ele representa algo completamente diferente do que representa em outra, já que essa associação é convencionada entre os participantes dessa cultura.
Isto posto, é óbvio que o gesto de aproximar a mão espalmada da testa, com o cotovelo estendido lateralmente, é um signo utilizado em comunicação. Que transmite uma mensagem e está associado a sentidos pré-definidos. O gesto de “prestar continência” (nome que se dá a ele) é convencionado como de uso militar. Prestar continência tem, portanto, inequivocamente, um significado militar.
E aqui chegamos à polêmica sobre os atletas brasileiros que prestam continência à bandeira nacional nos pódios dos Jogos Pan-Americanos. É evidente que esse gesto tem um significado. De imediato, que eles estão envolvidos com o meio militar. É bem esse o caso – trata-se de atletas que recebem apoio das Forças Armadas brasileiras. Eles receberam uma recomendação explícita para utilizarem o gesto nos pódios – provavelmente, como forma de “propaganda” ou exaltação às instituições que os apoiam.
Do ponto de vista político, é indício de oportunismo das Forças Armadas. Em outras competições, houve atletas militares ou com apoio das Forças Armadas que não fizeram o gesto nos pódios. Desta vez, dada a recomendação explícita, muitos o têm feito.
Por trás desse gesto, há algumas mensagens. Porque por trás de toda comunicação há uma mensagem. Embora quem emite a mensagem não tenha controle sobre sua interpretação, há pistas mais do que suficientes para que os comandantes militares imaginassem as possibilidades de interpretação que esse gesto podia gerar. Se não imaginaram, isso demonstra ignorância, no sentido próprio do termo.
Quem tem algum conhecimento do panorama do esporte olímpico no Brasil sabe que os atletas brasileiros de ponta têm pouquíssimo apoio, seja público ou privado. As Forças Armadas, percebendo a oportunidade, resolveram apoiar muitos desses atletas. Ofereceu salários, estrutura e condições de treinamento, a partir de um projeto elaborado para aumentar a delegação brasileira nos V Jogos Mundiais Militares, sediados pelo Brasil. De passagem, é bom lembrar que o orçamento das Forças Armadas advém de verba pública. Pois as Forças Armadas decidiram capitalizar o investimento com propaganda nos pódios. Pagamento merecido dos atletas pelo apoio? Talvez sim, mas um erro político que revela falta de sensibilidade.
É fato que as Forças Armadas carregam o peso de terem se envolvido no golpe militar responsável pela instauração de um regime ditatorial que durou mais de 20 anos. Hoje, entretanto, se não têm o poder político de antes, as Forças Armadas gozam de um prestígio regularmente atestado em pesquisas de opinião – provavelmente, pela imagem de dedicação à segurança do país, com a isenção que atualmente parece caracterizá-las. Entretanto, num país governado há mais de 12 anos por um partido “de esquerda”, do qual muitos líderes foram presos e/ou perseguidos durante o regime militar, e numa época em que em muitas manifestações têm aparecido pedidos de “intervenção militar”, com a notória existência de grupos que defendem essa intervenção ou mesmo um golpe, a atitude presta-se a múltiplas interpretações. Talvez a intenção da mensagem fosse apenas dizer: “Ei, estamos apoiando o esporte nacional, vejam que legal nossa atuação!” Mas os comandantes que recomendaram o gesto deveriam ter previsto a possibilidade de interpretações diferentes e a celeuma que ele poderia causar. E rever a recomendação, tendo em vista a repercussão negativa que ela causou.
Vale notar que, após a polêmica, o Comitê Olímpico Brasileiro se manifestou, mas não o Ministério da Defesa, que se limitou a reproduzir a nota do COB a respeito.
ADENDO 1 – Há outros gestos que aparecem nos pódios. Por exemplo, colocar a mão sobre o coração. Esse gesto tem outros sentidos: o coração simboliza a sede das emoções, especialmente o amor; portanto, colocar a mão sobre o coração significa demonstrar emoção, especialmente amor. Ninguém contesta esse gesto porque, obviamente, o seu sentido não se presta a polêmicas políticas, ao contrário do gesto de prestar continência.
ADENDO 2 – Alguns “guardiões da língua” logo saíram vociferando contra quem utilizou a expressão “bater continência”, sustentando que se trata de erro, porque o correto seria “prestar continência”. Ora, a língua é viva, e seu uso é dado pelos falantes. Quem nunca disse “bater continência”? Quem entende qualquer coisa diferente quando se diz “bater continência”? A expressão é válida e correta, referendada pelo uso generalizado e pela compreensão evidente do que ela significa para os falantes de língua portuguesa no Brasil.