Morreu Diaféria

Morreu hoje o jornalista Lourenço Diaféria, que foi cronista da Folha de S. Paulo. Fiquei triste. Diaféria possibilitou-me o primeiro contato com as arbitrariedades da ditadura. Explico…

Minha cidadezinha natal, Cambará, na década de 60, tinha um sistema de vida muito ligado à vida rural e uma predominante mentalidade conservadora típica dos proprietários de terras. Meu pai era eleitor da Arena e assinante do Estadão. Eu vivia na alienação típica desse ambiente e de uma infância e pré-adolescência despreocupadas. O horror da ditadura não chegava àquela família classe média bem “encaixada” no sistema.

Quando nos mudamos para Curitiba, em 1976, Papai tentou assinar o Estadão, mas o serviço de entrega do jornal não chegava em nosso novo endereço (no “distante” Ahu, a seis quilômetros do Centro…). Papai resolveu então assinar a Folha de S. Paulo, o que, naqueles tempos, representava uma grande mudança!

Passei a ler a Folha. E minha leitura predileta eram as crônicas de Diaféria. No dia 1º de setembro de 1977, a Folha publicou uma crônica sua intitulada “Herói. Morto. Nós.” Gostei muito do texto, que ficou marcado na minha memória. Foi a última crônica do autor que li na Folha.

O texto provocou a ira dos militares, que levaram Diaféria à prisão e ameaçaram fechar o jornal. Em protesto, a Folha publicou, na edição em que deveria sair a crônica seguinte de Diaféria, uma coluna em branco (veja aqui o relato do acontecimento no site da Folha).

Fiquei indignado. Diaféria desapareceu das páginas da Folha. Mas aquela sua crônica nunca se apagou das minhas lembranças.

Hoje, dia em que ele morreu, reli a crônica, no site da Folha. O texto me tocou, não só pelo seu conteúdo, mas pela carga emocional ligada a meu passado. Segue abaixo o texto, extraído do site da Folha.

HERÓI. MORTO. NÓS.
[Crônica publicada em 1º de setembro de 1977]
Neste texto foi mantida a grafia original da época

Lourenço Diaféria

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher – salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas – como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.

3 Comentários


  1. Olá Tomás
    Primeira vez aqui no blog (aliás, você disse que se sentiu um troglodita após SEIS DIAS sem internet, imagina eu, que fiquei SEIS MESES!!! Ótimo para desentoxicar, isso eu garanto). De qualquer maneira, como ia dizendo, primeira vez no blog, primeira vez que ouço essa história do sargento. Aconteceu no ano em que nasci, então realmente, minha memória não deve ter registrado.
    Mas dei uma pesquisada, claro (link), parece que causou comoção nacional mesmo, vou até perguntar para minha mãe se ela lembra disso.
    Enfim, sobre Diaféria, realmente colocou o seu coração ali naquelas linhas. Posso entender que isso lhe marcou – me marcaria também.

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