Coluna Interregno (29/11/2003)
Jamil Salloum Jr.
Caro leitor, hoje e terça-feira abordaremos um assunto da mais alta importância: o fundamentalismo. É graças ao depoimento corajoso de algumas pessoas que passaram por uma ideologia fundamentalista, e que a superaram, que possuímos material de pesquisa, análise e reflexão. O jornalista curitibano Tomás Eon Barreiros, 41, é uma dessas pessoas. Conheceremos em dois artigos a importante mensagem que esse brasileiro tem a transmitir sobre o assunto.
Nascido em Cambará (PR), Tomás chegou em Curitiba aos 14 anos, em 1976. No ano seguinte conheceu a TFP – “Tradição, Família e Propriedade”. Segundo Tomás, “a TFP é uma sociedade civil sem fins lucrativos que se propõe a defender os valores da tradição, da família e da propriedade privada, entendidos segundo o enfoque católico o mais conservador possível.”
A entidade foi fundada por Plínio Corrêa de Oliveira em 1960, dedicando-se ao combate ao comunismo, à esquerda de modo geral e à preservação dos valores do que chama de “civilização cristã ocidental”. Antigamente era comum a TFP fazer grandes campanhas contra o divórcio, o aborto, a reforma agrária e outras coisas do gênero. Seus membros, só do sexo masculino, vivem em sedes próprias, em regime espartano, quase militar.
Segundo Tomás, “do ponto de vista ideológico e doutrinário, a TFP segue o catolicismo medieval. São contrários ao Concílio Vaticano II, que modernizou a Igreja Católica, e adeptos dos rituais pré-conciliares, como a missa em latim. Veem o mundo atual como impregnado do espírito satânico e anti-católico. Creem que a civilização ocidental está num processo de derrocada dirigido por verdadeiros asseclas do demônio, que desejam instaurar um mundo totalmente contrário aos planos de Deus”. Conta o jornalista que para os adeptos da TFP, o que está “do lado de lá” ou é um inimigo a ser combatido ou é uma vítima dos engodos do mal, que precisa ser levada ao lado do bem.
Tomás se engajou na entidade em 1979. Conta que o processo de recrutamento de novos afiliados é muito bem estudado, gradual, e vai envolvendo o adolescente aos poucos. “Aos 17 anos, sonhador e idealista como eu era, fui presa fácil de uma causa que apareceu aos meus olhos como nobre e digna”, afirma. Atuando por 15 anos no recrutamento e formação de novos membros, com o tempo Tomás viu que algo não ia bem. Começou quando a TFP o encaminhou para uma casa de estudos onde moravam cerca de 25 pessoas, no bairro de Itaquera, zona leste da capital paulista. “Percebi logo que para lá eram dirigidas as pessoas com maior espírito crítico e que poderiam representar algum risco interno para a instituição. Vivíamos isolados, cada um no seu aposento, dedicando-se à oração, aos estudos e a algumas atividades manuais”, conta. Mas foi nesse lugar que o jovem começou a aumentar sua visão crítica da entidade.
Tomás diz que havia uma divisão interna no movimento. “A partir da análise dessa divisão, nós, moradores daquela sede, com acesso a todos os documentos da entidade, inclusive no que se refere a decisões internas da alta cúpula, centralizada na pessoa do fundador, percebemos diversos problemas”. Foi o início da sua libertação de consciência. A liberação definitiva aconteceu quando Tomás voltou a Curitiba. Lá decidiu cursar Jornalismo e, após, começou a trabalhar em um jornal. Afirma que esse súbito choque com a realidade abriu mais seus olhos. “Foi um processo penoso e demorado, mas acabei me afastando da TFP. Depois, ainda tive que passar por dois anos de psicanálise, o que ajudou a refazer meu eixo interior e me reencontrar”, conclui.
Terça-feira conheceremos as reflexões que Tomás tirou dessa experiência. Entenderemos o que é o fundamentalismo, seus perigos, como opera e como pode facilmente se impregnar em nossas posturas, independente de nosso credo ou filosofia.