BARREIROS, Tomás Eon, graduado em Jornalismo (PUCPR), especialista em Língua Portuguesa (PUCPR) e mestre em Comunicação em Linguagens (UTP). Professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário Positivo – UnicenP (Curitiba – Paraná).
Palavras-chaves: jornal – história – censura
Resumo
Na obra “O mez da grippe”, o escritor e jornalista Valêncio Xavier cria uma história unindo diversos elementos montados como colagem. A narrativa da obra é constituída a partir de uma espécie de mosaico de elementos ficcionais e não ficcionais. Entre esses elementos, estão recortes de jornais. O cenário é a cidade de Curitiba, no ano de 1918. Dois fatos importantes abalavam o mundo de então: a Primeira Grande Guerra e a epidemia de gripe espanhola que, nessa época, assolava o Brasil (Curitiba inclusive). Os recortes de jornais usados por Xavier evidenciam a existência de censura nas matérias sobre a epidemia de gripe em dois jornais curitibanos de então, o Diário da Tarde e o Commercio do Paraná. Pesquisa nos originais dos jornais confirma: o Diário da Tarde evitava abordar a gripe, fazendo-o apenas quando se tornou impossível escondê-la, e chegou a ter uma matéria censurada em suas páginas. Quanto ao Commercio do Paraná, ora ignorava a epidemia de gripe, ora a ironizava, quando não afirmava explicitamente que ela não existia. O objetivo deste trabalho é apresentar este curioso caso de censura, a partir da pesquisa, nos originais, de textos e recortes dos diários reproduzidos em “O mez da grippe”, obra que serviu de “pista” para a pesquisa do caso.
A gripe censurada
O cenário é a cidade de Curitiba, no ano de 1918. Dois eventos de grande importância abalavam o mundo de então: a Primeira Grande Guerra e uma grave epidemia de gripe espanhola, que matou milhões de pessoas[1]. Prato cheio para os jornais, já que grandes desgraças sempre geram pautas. No que diz respeito à guerra, embora o palco fosse a distante Europa, o assunto era candente em Curitiba, cidade que acolheu imigrantes das mais variadas etnias e que contava com um bom contingente de alemães e seus descendentes. A Alemanha “inimiga” era personalizada pelos alemães que viviam na cidade, vítimas, muitas vezes, da intolerância de alguns brasileiros que neles viam representantes da nação contra a qual o país estava em guerra. A presença dos imigrantes, aliada à ampla divulgação do tema nos veículos noticiosos da época, aproximava de Curitiba as questões da guerra.
Mais ainda do que o conflito mundial, a gripe, esta sim, chegou realmente à cidade. A epidemia que grassava em outros pontos do Brasil chegou à cidade e começou a fazer suas vítimas, em grande número.
Naquela época, Curitiba tinha dois jornais de maior expressão: o Commercio do Paraná e o Diário da Tarde. Matérias sobre a guerra eram freqüentes nas páginas de ambos. Alguns textos mostram, inclusive, a animosidade entre curitibanos e germânicos moradores da cidade. A gripe espanhola, entretanto, não aparecia nas páginas dos referidos diários com o destaque que merecia a gravidade da situação, havendo fortes indícios de que houve censura às matérias sobre a epidemia em ambos os periódicos. O Diário da Tarde dava grande ênfase às matérias sobre a guerra, evitando noticiar a epidemia de gripe. À medida que a epidemia se alastrava, começaram a aparecer pequenas notas sobre ela, geralmente sobre a expansão da doença no Rio de Janeiro[2]. Essas notas foram aumentado de tamanho, até que o jornal tentou veicular uma extensa matéria em duas páginas (a capa e a página dois) sobre a “influenza”. Dessa matéria, no entanto, apenas uns poucos trechos saíram publicados – no restante, as páginas foram publicadas em branco, numa evidente censura ao conteúdo do jornal.
O Commercio do Paraná, por sua vez, a princípio não noticiava a epidemia. Por vezes, a epidemia de gripe aparecia em suas páginas para ter sua existência contestada. O jornal chegava a ironizar aqueles que acreditavam na chegada da epidemia à cidade. Na realidade construída pelo Commercio, não havia gripe espanhola em Curitiba…
Dos jornais para a ficção
O escritor, cineasta e jornalista Valêncio Xavier, nascido em São Paulo, mas radicado na capital paranaense, levou a história da Curitiba de então para as páginas da ficção. Na sua obra visual “O mez da grippe” (1998), Xavier cria uma história “colando” diferentes elementos, ficcionais ou não:
Valêncio recolheu recortes de dois jornais curitibanos de 1918 (Diário da Tarde e Commercio do Paraná) com notícias relacionada a dois fatos importantes da época: a epidemia de gripe espanhola (que então assolava o país) e a Primeira Guerra Mundial. Além disso, fazem parte do livro diversos outros elementos: um depoimento datado (1975-1976) de uma testemunha sobrevivente da epidemia, fotografias, anúncios de jornais, gravuras em bico de pena, um poema, símbolos religiosos, desenhos… Esses elementos são compostos alternadamente ao longo das páginas do livro, como se formassem uma página de jornal, um mosaico retratando os acontecimentos de determinado dia – sua distribuição segue uma cronologia diária estabelecida ao longo da obra. (BARREIROS, 2002: 14)
O fio condutor da obra é um poema, criado por Xavier, narrando a aventura de um homem que entra numa casa cujos moradores foram atingidos pela gripe e estupra uma mulher acamada por causa da doença. Os recortes dos jornais são apenas “colados” na montagem da obra, sem comentários do autor (há uma exceção da qual se falará adiante). Entretanto, a simples colocação das matérias dos jornais, mostrando que ambos insistiam em “esconder” a gripe, ou, no caso do Commercio do Paraná, até mesmo negar sua existência, evidencia a censura ao tema. O único comentário do autor sobre um recorte específico aparece quando a obra mostra uma página do Commercio com partes em branco. À margem do recorte, na vertical, está a frase: “matéria sobre a gripe censurada no jornal”.
A partir dessa “pista”, e feita uma pesquisa nos originais de ambos os jornais, constata-se que, realmente, houve censura ao tema.
O Commercio do Paraná
Textos sobre a gripe aparecem nas páginas do Commercio. Os textos abordam a epidemia como algo distante, ainda restrita à Europa ou à cidade de Dakar, que parece ter sido um foco de difusão da epidemia. Alguns textos, curiosamente, ironizam a gripe. É o caso, por exemplo, de uma nota da seção “Vida Social” do dia 27/10/1918:
SUELTO…
A influenza hespanhola e o amor seria uma tese psychologica magnifica para ser desenvolvida por um Paul Bourget de fancaria que se atormentasse num eterno sonho de duquezas e condessa, pallidas e loiras, muito liras e frias…[3] (…)
Algumas notas tratam indiretamente do tema, ao noticiarem que “não houve óbito” em determinado dia na cidade, ou que, entre os falecidos, nenhum morreu de doença infecciosa. Era um modo de negar a epidemia. No mesmo dia 27/10/1918, o jornal publicava:
Com o de hontem, ha três dias em que não se verifica um só obito nesta Capital (quadro urbano). Apenas no quarteirão das Merces se deram dois fallecimentos um por tuberculose e outro por lepra. Praza a Deus que assim se conserve Coritiba.
Curioso, ainda, o cuidado do jornal em retratar-se quando saía em suas páginas, provavelmente por desatenção, alguma nota sobre a gripe, ainda que de passagem. Veja-se, por exemplo, o texto veiculado na seção “Pequenas Notas”, também em 27/10/1918:
Em nossa edição de antehontem noticiamos a tentativa de suicídio de d. Anna Urichi, esposa do sr. Stanislau Urichi, barbeiro á praça Zacarias 22. Hontem visitou-nos esse sr. explicando-nos ter sido desgostos por um infermidade incuravel a causa daquelle acto de desespero, e não o receio da epidemia de grippe, como sahio na noticia.
Entretanto, até o funcionamento do jornal foi prejudicado pela doença, que atingiu muitos funcionários, prejudicando o trabalho normal nas redações e oficinas do Commercio. No dia 24/10/1918, o jornal divulgava nota sob o título “Commercio do Paraná”:
Em virtude de terem adoecido alguns dos nossos operários a ultima hora, não nos foi possível fazer com que a edicção de hoje sahisse com toda a matéria de redacção.
É em attenção aos nossos annunciantes e leitores que fazemos circular a nossa folha, mesmo com a parte redactorial quase toda sacrificada.
Esperamos no entanto poder amanhã melhorar o nosso serviço de forma a normalisal-o.
Ao que parece, tal fato ensejou comentários públicos, como se pode deduzir da longa nota publicada no dia seguinte, 25/10/1918:
NÓS E A “INFLUENZA”
A nossa edição de hontem saiu muito aquem da espectativa, devido a uma interrupção inesperada do trabalho em consequencia de terem adoecido operários da secção de composição, obrigando-nos assim ao sacrificio de materia redactorial cuja inserção foi absolutamente impossivel.
Esse facto suscitou hontem em certas rodas, commentarios ironicos em torno da nossa atitude em relação á epidemia da “gripe hespanhola”, dizendo-se abertamente que a molestia invadira a nossa tenda para obrigar-nos á uma formal retratação.
Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela razão de não ter sido de “gripe hespanhola” verificado ainda um só caso n’esta capital, tratando-se de simples grippe, aliás comum na estação que atravessamos, os casos de doença existentes.
Os proprios operarios da composição, que ao anoitecer de ante-hontem haviam se retirado indispostos, voltaram hontem ao trabalho, lépidos e dispostos após uma noite de repouso e de medicação caseira.
O nosso secretario de redacção, que ante-hontem se sentindo indisposto recolhera ao leito, acha-se em condições satisfactorias, contando estar dentro de dois dias reentregue aos seus labores. Sentindo-se bem, quis hontem mesmo deixar o leito, no que foi impedido pelo seu medico assistente.
Outra prova de valor contra a existencia da terrivel molestia entre nós, esta no facto de nunca o obituario coritibano haver apresentado menor cifra, como agora, pois segundo informa o sr. Benedicto Carrão, official do Registro Civil, ante-hontem e hontem nenhum obito foi dado a registo no seu cartorio. Isto, para uma população approximadamente de 80.000 pessoas, é de grande significação, convencendo-nos de que si a molestia por ahi reinante é a tal “influenza” de procedencia hespanhola, ella então mudou de aspecto, perdendo seu caracter feroz e tremendamente lethal, para mostrar-se comnosco d’uma extrema gentileza.
É a conclusão a que chegamos…
– A proposito do que hemos sustentado, do effeito moral depressivo que o alarme produz na população em momentos como o que atravessamos, predispondo-a para a molestia, julgamos proveitoso transcrever esta opinião do dr. Arthur Neiva, director do Serviço Sanitario do Estado de São Paulo:
“Não ha motivo, por emquanto, para o exagerado temor de muita gente, preocupando se demasiadamente com o mal, estabelecendo um ambiente de desconfiança e nervosismo, condemnavel por ser uma causa que facilita os estados morbidos.
Sabemos que em mais de um domicílio tem entrado o medico para attender a doentes e, entretanto, só tem encontrado pessoas victimas do seu injustificavel pavor.”
Essa nota mostra a “militância” do jornal em esconder a gripe que, ao que tudo indica, já fazia vítimas na cidade. Curiosamente, na mesma página, aparece a matéria “A INFLUENZA HESPANHOLA”, cujo conteúdo fora recebido “pelo telegrapho”. O texto, com 35 linhas, dá conta da preocupação do governo federal com a difusão da doença, informando que o Congresso não teve sessão porque muitos senadores e deputados estavam acometidos pela gripe. Ademais, informava que a epidemia alastrava-se em São Paulo.
No dia seguinte, a Seção “Vida Social” trazia o seguinte “Suelto”:
Hontem não funcionaram os cinemas e por isso as ruas centraes apresentavam um aspecto que lembra aquela villota em que nascemos onde é um dogma essa historia de todos irmos para o leito juntamente com as gallinhas, no sentido candido da phrase.
Os cinematographomanos (até parece neologismo allemão…) damnaram allegando que entre nós ainda não existe a peste hespanhola, com a mesma lógica com que so se soccorre um sujeito depois que se afogou num poço…
Aos poucos, ao que parece, as barreiras da censura iam caindo ante o fato evidente: a epidemia de gripe espalhava-se pela cidade. Indicativo desse fato é a publicação, no dia 27/10/1918, de uma nota do Serviço Sanitário divulgando a divisão da capital em zonas de vigilância sanitária para “prevenir a incursão da gripe hespanhola”. E no dia 30/10/1918, na seção “Varias”, o diário informa que não saiu a lume a edição do dia anterior porque muitos funcionários haviam adoecido. Assim começava a nota: Tem nos flagelado o demonio da “grippe”, “puxapuxa” ou que melhor nome tenha…. A mesma edição divulga, em duas colunas centrais de página com seis colunas, ocupando quase toda a altura da página, um extenso comunicado do “Ministerio da Justiça e Negocios Interiores – Serviço de prophylaxia rural do Paraná”, sob o título COMBATE A “GRIPPE”. O comunicado traz uma série de instruções à população sobre os procedimentos para combate e prevenção da epidemia de gripe espanhola. O comunicado oficial, assim, demonstra que as próprias autoridades promotoras da censura deram-se por vencidas, resolvendo assumir o fato. Apesar disso, no dia seguinte, editorial do Commercio continuava a procurar acalmar a população, mesmo admitindo o que sempre negara – a existência da epidemia. O texto, sob o título “Calma e cautela”, assim se inicia:
Continua a prostrar ao leito os habitantes da Capital, a “grippe” que há uma quinzena está grassando sem entretanto apresentar caracter grave, sendo que dos primeiros atacados a maior parte já se encontra restabelecida (…)
O Diário da Tarde
O Diário da Tarde, por sua vez, ao que parece, foi mais obediente à censura. Suas páginas davam grande ênfase às notícias da guerra, evitando abordar a gripe. Quando o tema surgia, era para divulgar a voz oficial, como no dia 08/10/1918, data em que o diário publicou matéria sob o título A vaccina jenneriana contra a “gripe hespanhola”:
Afim de vulgarizar a applicação da vaccina jenneriana, contra a epidemia de grippe ou “influenza hespanhola”, que actualmente está grassando em Dakar, no sul da Europa e segundo se diz na Bahia e no Recife, o sr. dr. Carlos Seidl, director geral de Saúde Pública, da Capital Federal, fez enviar aos inspectores de saude dos portos do norte e do sul, o seguinte telegramma: [Segue um telegrama recomendando a instalação de postos de vacinação nos portos.]
Pouco a pouco, começam a aparecer notícias da epidemia na seção “Noticias do Paiz”, publicada no rodapé da capa. Em geral, são notícias procedentes do Rio de Janeiro, sempre noticiando o alastramento da epidemia na capital federal, como no dia 10/10/1918 (“Alastra-se a influenza hespanhola”) e no dia 11/10/1918 (“A epidemia de influenza hespanhola esta causando pavor”). No dia 15/10/1918, a seção “Do Estado” publica a seguinte nota, sob o título “Estará ahi a influenza hespanhola?”:
GUARATUBA, 15 – Em virtude de terem se dado casos de doenças suspeitas a bordo do vapor “Oyapock”, a policia prohibiu que esse navio atracasse e estabeleceu um cordão sanitário.
Dando mais uma vez difusão à voz oficial, a edição do dia 16/10/1918 publica matéria sobre prevenção à gripe (“Conselhos ao povo”). As notas da seção “Noticias do Paiz”, quase sempre o único lugar onde se refugiam as notícias sobre a epidemia, vão aumentando de tamanho e ganhando maior destaque com o passar dos dias, à medida que a epidemia ganha força no Rio de Janeiro, mas não falam da gripe em Curitiba.
Os textos do Diário indicam que o periódico obedeceu à ordem de censura, mas indicou seu descontentamento em relação à mesma em textos irônicos. Uma seção denominada “A Semana Rimada” trazia vez ou outra um poema jocoso em que a gripe era abordada e até mesmo a censura desvelada. No dia 23/10/1918, saiu publicado o poema abaixo, assinado por “Juca Viola” (provavelmente, um pseudônimo):
Não há nada neste mundo
Que mais possa aborrecer
Do que cruel “quebradeira”
Sem vintém pr’a dispender
Esteve aqui a Olona
Com Salvat – o bello par –
E não pude uma só vez
os mesmos apreceiar – p!
Não vos sei tambem dizer
Porque houve tal vazante
Si por andarem como eu
Numa lizura berrante
Ou si por cousa diversa:
Por se mente na cachóla
Do povo qualquer receio
De companhia “hespanhola”
Pois d’ella só se falla
N’outra cousa não se pensa
E anda tonta, atrapalhada,
A própria gente da “Imprensa”
O Lauro Lopes já disse:
Quem quiser ser forte e “são”
Beba limão com cachaça
Sem abusar do “limão”…
Cada coro – uma sentença!
Um conselho em cada esquina
E a série de disparates
Boas risadas propina…
Mas eu, pensando do caso,
Prá não adoecer
Tomo o conselho do Lauro
E deixo o barco correr
No dia 26/10/1918, saia na mesma seção, desta vez assinado por “José da Gaita”, outro poema com 13 quadras, todas abordando a gripe, das quais se destacam as duas últimas, por tratarem ironicamente da censura:
“A HESPANHOLA”
(…)
De manhã abro as gazetas
nenhuma nota – que bola!
Limpo e relimpo as lunetas
Nada, nada de hespanhola…
A policia nos socorre
Toda noticia degola
– Aqui, de vez, ninguém morre,
Foi p’ro xadrez, a hespanhola.
Assim como aconteceu com o Commercio do Paraná, aproximando-se o final do mês de outubro de 1918, começa a cair a censura no Diário da Tarde. Na edição do dia 28/10/1918, a seção “Noticias do Paiz” publica uma série de notas, com títulos como os seguintes: A situação no Rio – Declina lentamente a epidemia e os cadáveres já são enterrados – A peste recrudesce a sopa dos pobres. A edição de 29/10/1918 traz o comunicado COMBATE A “GRIPPE”, do “Ministerio da Justiça e Negocios Interiores – Serviço de prophylaxia rural do Paraná”, publicado também, no dia seguinte, no Commercio do Paraná. No dia 30/10/1918, o Diário publica artigo em que finalmente “abre o jogo” quanto à existência da censura. Do artigo de sete parágrafos, destaca-se aqui o terceiro:
Embora a censura policial tivesse varrido do noticiario da imprensa a relatação dos fatos verificos com relação á epidemia, o nosso dever profissional nos força a sahir do mutismo em que nos encontravamos nesse sentido e vir dizer ao povo que todo esse preparativo que se faz não é apenas para evitar que o mal chegue até nos, mas sim para dar combate á enfermidade que já nos atingiu.
Enfim, fica revelado, pelas próprias páginas do jornal, que houve “censura policial” para que as notícias sobre a epidemia de gripe não fossem publicadas.
Conclusão
A presente pesquisa, cujas pistas saíram de uma obra visual de ficção de Valêncio Xavier que utiliza, entre outros elementos, recortes de jornais, evidencia a existência de censura à imprensa no início do século XX. Tal censura atingiu dois importantes diários da cidade de Curitiba (Commercio do Paraná e Diário da Tarde), revelando o poder policialesco do Estado sobre a informação. A censura existiu, efetivamente, impedindo a divulgação de fatos de interesse público e limitando, tanto quanto possível, a publicação de material sobre a epidemia de gripe espanhola à versão “oficial”, controlada pelo poder público, numa clara tentativa de cerceamento da livre difusão da informação.
Embora não seja o objetivo deste trabalho especular os motivos dessa censura, pode-se deduzir, de alguns dados dos textos publicados, que, provavelmente, pretendia-se evitar que se espalhasse o pânico entre a população, especialmente diante da grande dificuldade que tinha o poder público em lutar contra o alastramento do mal (e nisso se pode vislumbrar também uma intenção política e não apenas de saúde pública, por causa da impotência do governo em evitar a epidemia). É o que se depreende, por exemplo, da chamada à “calma e cautela” por parte do Commercio, ou ainda do trecho já citado em que o jornal reproduz o parecer de um médico (sem grifo no original):
– A proposito do que hemos sustentado, do effeito moral depressivo que o alarme produz na população em momentos como o que atravessamos, predispondo-a para a molestia, julgamos proveitoso transcrever esta opinião do dr. Arthur Neiva, director do Serviço Sanitario do Estado de São Paulo:
“Não ha motivo, por emquanto, para o exagerado temor de muita gente, preocupando se demasiadamente com o mal, estabelecendo um ambiente de desconfiança e nervosismo, condemnavel por ser uma causa que facilita os estados morbidos. (…)
Essas supostas “boas intenções” em favor da saúde pública (baseadas, diga-se, em conhecimentos limitados da medicina de então), ou o desejo de dissimular a impotência governamental podem explicar a censura, embora, obviamente, não a justifiquem.
Referências bibliográficas
BARREIROS, Tomás Eon. Jornalismo e construção da realidade: análise de O mez da grippe como paródia crítica do Jornalismo. Curitiba : Pós-Escrito, 2003.
BERTOLLI FILHO, Cláudio. A gripe espanhola em São Paulo. in Ciência Hoje, vol 10, nº 56, outubro de 1989.
COMMERCIO DO PARANÁ. Diversas edições de outubro de 1918. Arquivos da Biblioteca Pública do Paraná – Seção de Documentação Paranaense.
DIÁRIO DA TARDE. Diversas edições de outubro de 1918. Arquivos da Biblioteca Pública do Paraná – Seção de Documentação Paranaense.
XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo : Cia. das Letras, 1998.
Notas
[1] Há divergências quanto ao número de vítimas fatais da epidemia. Algumas estimativas apontam para mais de 20 milhões de mortos em conseqüência da doença, no mundo todo (BERTOLLI FILHO, 1989), enquanto há estudiosos que chegam a estimar esse número em até 100 milhões.
[2] Enquanto o noticiário procurava aproximar dos leitores o tema da guerra, fazia o contrário com a gripe, à medida que as matérias publicadas diziam respeito a locais distantes.
[3] Procura-se, neste trabalho, preservar a grafia original, tal como publicada nos jornais pesquisados.