A morte certamente é o tema mais intrigante da humanidade, objeto constante de estudos e discussões e preocupação permanente de um número enorme de pessoas. Quem jamais pensou na própria morte? Ante a impossibilidade de se “viajar” para além da vida terrena, as diferentes religiões construíram variadas teorias sobre o que acontece após a morte física. De uma perpétua reencarnação à ideia de um “juízo final” que determina o destino eterno post-mortem de cada alma, passando por uma dissolução da consciência individual, são muito variadas as concepções religiosas sobre a subsistência da alma após o último suspiro.
Obviamente, tema tão presente na realidade cotidiana da humanidade não poderia deixar de atrair a atenção de cientistas preocupados em entender o homem e o universo. A ciência contemporânea tem se debruçado sobre o assunto. E uma das pesquisas mais interessantes a esse respeito parte da análise da chamada “experiência de quase morte”. A expressão foi se popularizando a partir de uma obra hoje clássica sobre o tema, “Vida depois da vida: a investigação do fenômeno de sobrevivência à morte corporal”, do psicólogo estadunidense Raymond Moody.
O termo refere-se à experiência de pessoas que estiveram muito próximas da morte, mas não morreram, e relataram suas impressões. Há diferentes relatos sobre tais experiências, desde a Antiguidade – entretanto, as pesquisas a respeito passaram a tomar foro de estudo científico especialmente a partir da difusão do trabalho de Moody, exposto no seu best-seller.
Com base em suas pesquisas com pessoas que fizeram relatos dessas experiências (conhecidas também pela sigla EQM), Moody identificou algumas características comuns a elas, como, por exemplo: a sensação de estar fora do corpo, um sentimento de paz e ausência de dor, a impressão de passar por dentro de um túnel em direção a uma fonte de luz, o encontro com “seres espirituais”. Outros cientistas seguiram os passos de Moody e também se dedicaram ao estudo da EQM, como o médico holandês Pim van Lommel, autor da obra “Endless Consciousness: a scientific approach to the near-death experience” (“Consciência sem fim: uma abordagem científica da experiência de quase morte”, em tradução livre), não publicada em português, e a britânica Penny Sartori, que publicou “The near-death experiences of hospitalized intensive care patients: a five year clinical study” (“Experiências de Quase-Morte em pacientes internados em terapia intensiva: um estudo clínico de cinco anos”, em tradução livre), também inédito no Brasil. O médico inglês Sam Parnia é outro estudioso que publicou livro resultante de suas pesquisas com pacientes: “O que acontece quando morremos – Um estudo sobre a vida após a morte”.
Hoje, a EQM não é mais simples especulação: é área de estudo da ciência. Claro que também é foco de atenção da religião – trata-se de um terreno de interesse comum da ciência e da religião, área de contado e campo privilegiado para discussão da relação entre ambas.
DEBATE
Em agosto, o Instituto Ciência e Fé promoverá um debate sobre as EQMs, reunindo especialistas e estudiosos do assunto. O evento acontecerá no dia 16/08, às 10 horas, no auditório da Escola de Enfermagem Catarina Labouré, na Rua Jacarezinho, 1.000 (bairro Mercês, em Curitiba), com entrada franca para os interessados.
O debate será mediado pelo médico e vice-presidente do ICeFé Cícero Urban. “É uma área controversa, não há posicionamento médico oficial sobre esse fenômeno. Vai ser um debate muito proveitoso, porque veremos pessoas com visões bastante aprofundadas da questão, grandes estudiosos”, prevê.
Um dos especialistas que estará presente no debate é o médico Laércio Furlan, que trabalhou em Unidades de Terapia Intensiva por 35 anos, durante os quais teve contato com muitos pacientes terminais. Ele levará ao debate as diferentes explicações científicas para o fenômeno, agrupadas basicamente – numa simplificação – em três correntes: a materialista, que considera a EQM uma alucinação causada pela falta de oxigenação no cérebro; a psicológica, que coloca o fenômeno como efeito da memória; e a transcendental, que acredita na persistência da consciência para além da vida cerebral. Todas essas correntes têm defensores de peso na área científica.
O evento contará também com a participação do médico Dagoberto Requião, que, para além do seu trabalho profissional, teve uma EQM quando sofreu uma cirurgia em 2009. Ele relatará sua experiência pessoal, a partir da qual – como geralmente acontece com pessoas que passam por uma EQM – mudou seu modo de encarar o mundo e a morte. No seu caso, a experiência foi uma visão de fora do corpo, que ele teve durante o período em que permaneceu em coma.
Outro pesquisador a participar do debate é o psiquiatra Carlos Harmath, que começou a estudar as EQMs a partir do seu interesse profissional em entender os fundamentos psíquicos do misticismo. Ele ressalta que os relatos a respeito das EQMs são universais, existentes em épocas distintas e culturas as mais variadas, mas com evidentes pontos comuns. “Esses relatos são provavelmente verídicos e têm algo a nos revelar. É importante levá-los em consideração e investigar mais profundamente”, afirma Harmath. Ele acredita que a ciência caminha para considerar que existe “algo post-mortem”.
Também falará no evento o padre Ricardo Hoepers, que apresentará a visão teológica do assunto. Ele diz que buscará fazer “a costura entre aquilo que a ciência diz, as possibilidades dessa experiência, com a perspectiva espiritual de vida após a morte”. Segundo ele, “essas experiências mostram o lado humano da nossa consciência e revelam que, nos momentos de limite, nossa consciência tende a estar mais aprimorada, aberta a refletir sobre o destino da nossa própria vida”. O religioso defende que o fenômeno não é nenhuma novidade na perspectiva cristã e cita os episódios de ressurreição narrados na Bíblia como exemplos de pessoas que estiveram “do outro lado” e voltaram.
As múltiplas perspectivas que serão apresentadas no debate certamente ajudarão o público a formar uma visão mais aprofundada sobre tema tão instigante que toca a todos de perto.
“De repente, a escuridão. E eis que surge um longo túnel, com uma luz ao seu final, como que chamando para um local de paz e bem-estar. Seres o acompanham, lado a lado, e tudo é tranquilidade. Mas há algo errado nisso. Ainda não é o momento, há mais coisas para se fazer antes de chegar ao fim do túnel! E num borrão, a cena divina é deixada para trás. Lá está você, olhando do teto, para a equipe médica tentando fazer seu coração voltar a bater. Com um forte tranco ele volta, bem como você ao seu corpo.”
(Fernanda Falcão e Nelson de Barros em resenha da obra “O que acontece quando morremos”, de Sam Parnia – Revista Ciência & Saúde Coletiva.)