A juíza federal Carla Rister, da 16ª Vara Cível de São Paulo, suspendeu, em todo o país, a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para a obtenção do registro profissional no Ministério do Trabalho e o conseqüente exercício da profissão. A sentença foi publicada dia 10 último no Diário Oficial do Estado. E é de assustar. Embora seja jornalista profissional diplomado e professor em uma faculdade de jornalismo, não é por um sentimento de defesa corporativa que me assusto. O que apavora é o teor do documento produzido pela juíza. É de impressionar que haja no Judiciário, decidindo questões que afetam as vidas de milhares de pessoas, juízes que julgam sem o mínimo conhecimento de causa sobre aquilo que pontificam.
Os argumentos apresentados pela magistrada em apoio a sua decisão são de um primarismo absolutamente assustador. Passariam por piada, não fizessem parte de uma triste realidade: a do despreparo flagrante de alguns elementos do Judiciário. O documento da juíza indica que ela não tem idéia do que faz um jornalista. Sua noção é baseada numa visão romântica do jornalismo do início do século passado, quando sequer havia televisão e muito menos Internet. E, ao que indica o texto, a Dra. Carla Rister parece também não ter o hábito de ler jornais e revistas. Afirma ela, por exemplo, que, caso a exigência do diploma prevalecesse, “o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão”. Ora, qualquer pessoa que leia os maiores periódicos nacionais está acostumada a ler economistas tratando de economia, médicos escrevendo sobre saúde etc., sem qualquer infração à exigência do diploma de jornalismo.
Veja-se este trecho do documento: “O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional”. Pensemos a quantas profissões pode se adequar tal brilhante descrição. Um professor de história, por exemplo. Ou um advogado, que pode ser muito bem forjado por “uma formação cultura sólida e diversificada, pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional”. Ou um professor de português, ou de geografia, ou de letras… Então, que se acabe com a exigência de qualquer diploma para o exercício de profissões para cuja competência bastem esses requisitos. E seriam poucas as que não se enquadrariam…
Há, entretanto, trechos mais assombrosos no texto da juíza. Vejamos a “pérola” máxima: “Tenho ainda que a estipulação do requisito de exigência de diploma, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem perpetrar ofensa aos princípios constitucionais, na medida em que impõe obstáculos ao acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por um revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pôde ter acesso a um curso de nível superior, pelo que estaria restringida à liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual”, escreve a magistrada. Rir ou chorar diante de tal pieguice? Proclame-se então: todos aqueles que, afetados pelos tristes reveses da vida, não puderam ter acesso a um curso superior, podem exercer a profissão com que sonharam, desde que tenham talento para tal. Aliás, eu gostaria de ser juiz. Tenho talento para o mister, sou justo, tenho formação cultural sólida e diversificada e hábito da leitura. Infelizmente, os reveses da vida não me permitiram cursar Direito… Quanto ao “caráter elitista” do diploma, se a solução é abolir a exigência do diploma, por que não se adotar o mesmo critério para todas as profissões regulamentadas?
Mas os absurdos não param por aí. Crê a magistrada que a exigência de diploma fere o preceito constitucional de livre manifestação do pensamento e da expressão intelectual! Rir ou chorar? Vou recorrer à Dra. Carla Rister solicitando que ela obrigue a Globo a ceder-me cinco minutos diários no Jornal Nacional para a garantia de meu direito constitucional à livre manifestação do pensamento… E a Folha de S. Paulo terá que ceder-me espaço para a garantia de minha expressão intelectual, conforme determina a constituição…
Há mais, ainda. A ilustre juíza argumenta que a atual regulamentação da matéria é falha, por condicionar “o exercício da profissão tão-somente com base na exigência do diploma de jornalista, sem prever qualquer outra exigência que aferisse o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional”. Essa é boa. Então, para um médico ser contratado por um hospital basta apresentar o diploma? Para um veículo de comunicação contratar um jornalista basta, também, que este mostre o canudo? Os empregadores não têm critérios para “aferir o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional”?
O pior de tudo, entretanto, é perguntar o que há por trás dessa decisão da juíza, em uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal e Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo. É triste que o teor da decisão dê ensejo e justifique que se formule tal questão. Melhor seria acreditar, mesmo, na ignorância da juíza, embora nos 15 meses de debate que houve entre a liminar e a decisão final a magistrada tivesse todas as condições de se informar melhor a respeito do que faz um jornalista.
Diante disso, confiar no Judiciário ou temê-lo? A resposta virá após o julgamento do recurso cabível. Espero que meus temores sejam injustificados e que nas instâncias superiores, qualquer que seja a decisão, esteja ela bem fundamentada no conhecimento a respeito daquilo que se julga.