As discussões sobre a descriminalização ou não do uso de drogas, especialmente a maconha, parecem estar focadas no alvo errado
O debate sobre a liberação do uso de drogas é complexo e interminável. Envolve uma série de questões de difícil solução e indica diversas contradições no modo como o tema tem sido considerado no Brasil. Travar o debate apenas em torno da questão da legalização pode conduzir à focalização de aspectos secundários.
É fato que desde sempre o ser humano utiliza o que hoje se pode caracterizar como “droga”. Dentre os mais variados alimentos consumidos pelo homem ao longo da história e ao redor do planeta, muitos têm elementos que alteram de alguma maneira o funcionamento cerebral e influenciam o comportamento. Quantas pessoas, por exemplo, costumam tomar chá ou café para se manterem despertas ou animadas? A partir do desenvolvimento da indústria farmacêutica, incontáveis drogas passaram a ser utilizadas na tentativa de curar doenças – não à toa, são vendidas em estabelecimentos chamados de “drogarias”. Muitos remédios utilizados cotidianamente por milhões de pessoas afetam também o comportamento, e mesmo aqueles que não buscam esse efeito específico frequentemente podem levar a ele como efeito colateral.
Portanto, trata-se de definir qual o limite entre as drogas “aceitáveis” e as “não aceitáveis”, dividi-las entre lícitas e ilícitas. Quanto àquelas que possuem efeito medicinal – inclusive os psicotrópicos –, a sociedade contemporânea criou um sistema de controle baseado na orientação de profissionais especializados, os médicos. Portanto, as drogas produzidas pela indústria farmacêutica podem ou não ser usadas conforme a indicação desses profissionais, com vistas a fins específicos de cura ou tratamento de doenças.
Diferentes pesquisas indicam que compostos canabinoides (presentes na maconha) podem ser utilizados terapeuticamente – o que, entretanto, não significa que fumar maconha tenha o mesmo efeito. Nesse caso, o uso terapêutico dos canabinoides poderia enquadrar-se no mesmo tratamento legal dado a outros psicotrópicos empregados de modo medicinal.
Além das drogas comercialmente produzidas para serem empregadas como medicamento, inúmeras outras substâncias têm efeitos buscados por usuários que desejam usufruir de alguma sensação provocada por elas. O álcool e o tabaco são duas das mais nocivas, responsáveis por mortes, enfermidades e danos sociais de tal monta que são difíceis de mensurar. Artigo de Dom Odilo Scherer reproduzido na edição anterior do Jornal Universidade comentava a estimativa de que 32 milhões de brasileiros são atingidos, em graus diferentes, pelo uso de drogas.
A droga faz mal
É fato que muitas drogas são prejudiciais à saúde. O tabaco, em qualquer quantidade, e o consumo exagerado de álcool são comprovadamente danosos ao organismo. Entretanto, são drogas lícitas, e qualquer pessoa maior de idade pode utilizá-las conforme queira, sem ser criminalizado por isso. Assim como acontece com a ingestão de alimentos hoje comprovadamente nocivos, mas que continuam sendo consumidos sem qualquer problema legal – maus hábitos alimentares, ao lado do sedentarismo e do uso de fumo e álcool, são os principais causadores das doenças cardíacas, que estão em primeiro lugar nas causas de morte dos brasileiros. Entretanto, nenhum desses hábitos é legalmente coibido.
Não há que se discutir, portanto, os malefícios dessas drogas para a saúde. Isso é fato assente. É difícil acreditar que qualquer fumante ignore que fumar prejudica a saúde, assim como os familiares e amigos dos alcoólatras têm toda evidência dos prejuízos causados pelo uso excessivo do álcool. Portanto, o centro da discussão não deve ser o prejuízo à saúde, já que negá-lo é ir contra as evidências. Há outras questões fundamentais. Por que certas drogas são legais e outras não? A colocação do consumo de drogas como ato ilegal reprime efetivamente o seu uso? Deve o Estado interferir na decisão individual sobre usá-las ou não? São muitos os aspectos envolvidos em tão complexa discussão.
Liberdade individual
Quanto à interferência do Estado sobre a autonomia do indivíduo, na coerência de um sistema democrático de garantia de liberdades individuais, caberia a cada cidadão capaz e autônomo decidir o que deve ou não deve fazer consigo mesmo – incluindo o consumo ou não de drogas. No entanto, sabe-se que o uso de drogas lícitas afeta consideravelmente o sistema público de saúde. Ou seja, a decisão individual (fumar ou não, beber ou não) acaba prejudicando a sociedade, já que o número enorme de leitos hospitalares e os vultosos recursos empregados no tratamento de doenças decorrentes do fumo e do álcool tiram leitos e recursos que poderiam ser destinados a doentes que não foram causadores conscientes de suas enfermidades. Isso poderia bastar para legitimar a ação do Estado ao coibir a liberdade de uso. Entretanto, como observa o médico oncologista Cícero Urban (contrário à legalização do uso da maconha), o álcool e o tabaco, embora causem grandes males ao sistema de saúde nacional, não poderiam ser proibidos porque não há condições culturais para isso. Para ele, o melhor a ser feito é a adoção de medidas educativas. “É preciso orientar as pessoas quanto ao uso excessivo. O caminho está na conscientização e na restrição da propaganda”, defende. Educação e conscientização, acompanhadas de alguma coibição legal (como a restrição à propaganda, por exemplo, e ao uso do fumo em locais públicos fechados), podem ser um bom começo.
Na prática, o que tem acontecido é a colocação de determinadas drogas na ilegalidade. O atual sistema jurídico brasileiro permite ao Estado essa limitação da autonomia individual, feita com base na ideia de um bem comum maior. Coerente com isso é a argumentação de que a liberação da maconha traria malefícios sociais pela possibilidade de inserção de um número cada vez maior de usuários no mundo da drogadição, especialmente quando se considera que a maconha é “porta de entrada” para drogas mais pesadas. Esta é a dinâmica da busca hedonista por uma satisfação cada vez maior: uma vez experimentadas as sensações das drogas mais leves, o usuário tenderia a buscar outras sensações que o organismo viciado só encontraria em substâncias cada vez mais fortes. Isso levaria a maior prejuízo social, com mais ampla degradação do sistema público de saúde.
Repressão
Outro aspecto importantíssimo que merece atenção: a atual política de repressão ao uso de drogas ilícitas e de combate ao comércio ilegal de entorpecentes tem efetivamente conseguido impedir sua proliferação? Trata-se de uma questão de política de segurança pública que deve ser aprofundada. As evidências estatísticas indicam que o combate repressivo policial não tem dado conta de impedir o crescimento do consumo de drogas ilícitas. Algumas vozes importantes argumentam que a descriminalização da produção e do consumo da maconha diminuiria o problema – uma alegação a considerar é que a maconha se torna porta de entrada para as drogas pesadas por colocar o usuário em contato com o mundo do tráfico criminalizado; a descriminalização teria então como efeito afastar do contato com criminosos os usuários de uma droga considerada mais leve.
Há em diferentes países experiências variadas, com resultados difíceis de avaliar quando se pensa em transpô-las para o Brasil. Países com consumo livre têm culturas sem muitas semelhanças com a brasileira. O exemplo mais próximo é o do Uruguai, onde o consumo foi recentemente tornado lícito, que parece apontar para uma amenização do problema no país vizinho. Mas é difícil dizer quais seriam os efeitos de uma medida semelhante no Brasil.
O ex-titular da Secretaria Municipal Antidrogas de Curitiba (hoje extinta), o policial federal Nazir Abdalla Chain, defende que o enfrentamento às drogas e seus problemas conexos deve ser apoiado em quatro pontos: a prevenção, a repressão, o tratamento dos dependentes e sua reinserção social. A prevenção pode ser feita com a oferta ampla, aos potenciais usuários, de atividades alternativas que os afastem do vício – como atividades lúdicas e esportivas, por exemplo –, além de mais oportunidades de trabalho e emprego e de campanhas constantes de conscientização sobre os malefícios da drogadição. A repressão depende do aparelhamento adequado: pessoal treinado e em número suficiente, equipamentos, tecnologia. O tratamento e a reinserção social dos adictos dependem de uma estrutura de atendimento ampla e eficaz.
Como se pode ver, a questão é extremamente complexa e exige um debate que vá muito além da polêmica sobre a legalização do uso. O tema deve ser ampla e profundamente estudado, mas, além disso, é preciso haver uma atuação decidida nos pontos sobre os quais não há dúvida, como a educação preventiva. E, de qualquer maneira, não se pode admitir uma atitude omissa dos agentes públicos diante de problema tão importante e característico dos tempos atuais.