Um bom caminho para menores carentes

Quantas são as crianças ditas carentes no Brasil? Difícil – senão impossível – saber ao certo, tanto mais que o termo, de si, é vago. As estatísticas, pouco confiáveis, apontam para cifras astronômicas e têm servido mais para uso em discursos políticos do que para facilitar a busca de soluções. Os números existem para todos os gostos e todos os usos… Saindo da retórica e entrando na ação concreta, grupos voluntários dão o exemplo da eficácia possível no combate ao problema do menor carente. Na receita, um pouco de dedicação de cada um e a parceria com empresas privadas.


“Lar O Bom Caminho”: o nome é sugestivo. Atrás desse nome, está não só o desejo de bem encaminhar o menor carente, mas um exemplo de um caminho possível para amenizar o problema dos menores desfavorecidos. A iniciativa de fundação do lar foi de um grupo de amigos interessados em ajudar crianças pobres.

Criado em 1972, seu princípio foi bem modesto. O Lar funcionava como uma espécie de albergue, numa pequena sede obtida pelo grupo inicial. Paulatinamente, as atividades foram se encaminhando para constituir o que é hoje o Lar, um modelo de atendimento às crianças. Com a adesão crescente de pessoas dispostas a colaborar, a sede, localizada na Rua Bortholo Gusso, 191, no Capão Raso, foi ampliada.

AMBIENTE FAMILIAR

Atualmente, o Lar abriga 40 crianças. O número é pequeno não só em função do tamanho das instalações, mas também porque o objetivo é evitar que um número muito grande de crianças dificulte um atendimento de acordo com a meta dos dirigentes da instituição, que é criar um ambiente familiar para os menores.

A casa não cuida de meninos de rua ou de menores abandonados, mas de crianças cujos familiares não têm condições de manter. O Lar recebe apenas meninos, entre quatro e oito anos de idade, que ficam na instituição normalmente até os 18 anos.

O regime é aberto: todos estudam em escolas públicas, e seu rendimento é acompanhado por professores do Lar. A sede conta com alojamentos, refeitório, sala de aula, salas de estar, quadra de esportes e até uma academia de judô.

AULAS DE REFORÇO

Há dois professores contratados no Lar. Uma professora dá aulas de reforço, e um professor ensina inglês, datilografia, língua portuguesa e literatura.

Jó Maurício da Silva, tenente da reserva do Exército, coordenador do Lar, foi instrutor do antigo Colégio Militar de Curitiba. Ele diz que, na casa, “a disciplina é militar”. Os meninos são divididos em três “pelotões”: Falcão, Pantera e Águia. Cada pelotão possuiu um “comandante” escolhido por seu espírito de liderança. Os pelotões juntos formam uma “companhia”, que tem também seu comandante geral.

Os “comandantes” organizam as escalas de serviço: os próprios meninos fazem a limpeza da casa e cozinham. Em linguagem militar, Silva descreve o programa diário das crianças: alvorada às 5h45, seguida de banho, formatura geral, café da manhã. Depois, vão para a escola. E também têm duas horas de aulas de reforço, além da datilografia e do inglês.

ACADEMIA DE JUDÔ

A “menina dos olhos” do Lar é a academia de judô. A princípio, os dirigentes enviavam os meninos a uma academia particular. Depois, fizeram ao instrutor Neuri Ferreira Tussolino, faixa preta de judô, uma proposta irrecusável: o Lar forneceria o espaço para sua academia e, em troca, os meninos teriam aulas gratuitas. Proposta aceita e sucesso garantido: vantagem para ambas as partes.

O tesoureiro do Lar, Júlio Gomel, diz que essa parceria foi muito benéfica para as crianças: “O judô ajuda muito a cultivar o respeito e a disciplina”, diz. Além disso, Gomel cita outra vantagem importante: “Com a fundação da academia, recebemos o convívio de pais e alunos de um nível social diferente, o que nos ajuda bastante.” Ele comenta que os pais de alunos não pertencentes ao Lar têm “muito carinho” para com os internos. E exalta a qualidade dos atletas: “Em todos os campeonatos estaduais de que a academia participou este ano, foi vencedora.”

A academia possui hoje quatro campeões brasileiros, um dos quais, David André Moreira Santos, de 11 anos, é interno do Lar. Neste ano, ele competiu em importantes torneios internacionais. No Torneio Internacional de Miami, realizado dias 5 e 6 últimos, nos Estados Unidos, do qual participaram atletas de 18 países, foi o segundo colocado na sua categoria (até 30 quilos). Da V Copa Sakura, realizada em Buenos Aires, Argentina, no mês de junho, e que contou com competidores de 14 países, David trouxe duas das três medalhas de ouro obtidas pela delegação brasileira. David está há quatro anos no Lar, para onde foi encaminhado, junto com um irmão, por sua avó, que os criava, três meses antes que ela morresse.

DOAÇÕES

Gomel diz que cada criança custa ao Lar cerca de um salário mínimo e meio. Mas quase tudo é recebido em forma de doações. O material para higiene pessoal dos meninos, por exemplo, é todo doado pelo Boticário. “Apesar de todos os problemas e dificuldades – declara – o Lar tem conseguido se manter bem. Não fazemos restrição em termos de saúde, educação e alimentação. Fazemos qualquer tipo de sacrifício para conseguirmos o que julgamos necessário para eles.” Segundo ele, a alimentação é rica e farta, graças aos doadores, alguns dos quais ele cita: Carrefour, Nutrimental, Avícola DaGranja. Com humor, Gomel elogia Gilberto Kopp, diretor da avícola, que foi goleiro do Atlético Paranaense: “Como atleta, era inimigo do frango, hoje é o rei do frango.”

BOAS NOTAS

Newton Carvalho, professor das crianças, acompanha o desempenho de cada uma na escola e conta que, em geral, elas têm boas notas. Todas são encaminhadas para algum curso profissionalizante, saindo do Lar, normalmente, aos 17 ou 18 anos. Eles são orientados até terem uma profissão e obterem um emprego.

Depois que terminam o segundo grau e estão empregados, alguns voltam para suas famílias. Os que não têm família, com auxílio e orientação do Lar, unem-se para alugar uma “república”, onde passam a viver por si próprios. Mas nunca se desligam da instituição, que continuam a visitar, “como se fosse a casa deles”, conta Júlio Gomel.

O tesoureiro da casa diz que tem havido muitas adesões de novos colaboradores: “Houve adesões importantes que fica difícil nomear. O pessoal todo que participa, com um entusiasmo contagiante, faz questão de permanecer no anonimato; isso é que nos estimula e até nos emociona.”

VOLUNTÁRIOS

Na sede da instituição há também um gabinete médico-dentário, onde atendem médicos e dentistas voluntários. De acordo com Gomel, o Lar oferece às crianças, atualmente, “uma série de condições mais ou menos parecidas com as que a gente costuma destinar a nossos filhos.”

Esse tratamento “familiar” é um dos segredos do sucesso da instituição. Newton Carvalho faz questão de dizer: “Tudo que fazemos aqui é feito com muito amor.” E Gomel deixa um recado: “Se houvesse alguns grupos que dedicassem algum tempo na criação de lares parecidos aqui em Curitiba, o problema do menor abandonado estaria, se não resolvido, bem minorado.”

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Outras instituições colaboram

O “Lar O Bom Caminho” foi favorecido por um programa inédito dos Rotary Clubs Champagnat e Cinqüentenário. Trata-se de um programa coordenado pelo rotariano Ivo Arthur, destinado a atender os problemas de deficiência visual de menores carentes. Uma equipe de médicos rotarianos voluntários visita instituições de atendimento a crianças pobres, examinando os menores para detectar problemas de visão. A primeira instituição visitada foi o “Lar O Bom Caminho”, onde se constatou que nove crianças tinham problemas. Segundo Arthur, o próprio Rotary se encarrega de arrecadar os óculos junto a óticas e fábricas, entregando-os aos menores. As nove crianças do Lar já receberam os seus.

 

(olho1) O número de crianças é pequeno, para que seja possível manter um ambiente familiar para os menores

(olho2) A fundação da academia de judô facilitou o convívio dos menores com pais e alunos de um nível social diferente

(olho3) Cada criança custa ao Lar cerca de um salário mínimo e meio, mas quase todos os gastos são cobertos por doações

(olho4) Os menores são encaminhados para algum curso profissionalizante, saindo do Lar, em geral, aos 17 ou 18 anos

 

(crédito1) Aniele Nascimento

(legenda1) Jó Maurício da Silva, coordenador do Lar O Bom Caminho

(crédito2) Aniele Nascimento

(legenda2) Alojamento principal do Lar

(crédito3) Aniele Nascimento

(legenda3) Almoço no refeitório: comida farta

(crédito4) Aniele Nascimento

(legenda4) Aulas de reforço

(crédito5) Divulgação

(legenda5) David Santos chegando da Argentina com duas medalhas de ouro, ao lado do instrutor Neuri Tussolino

[Jornal Indústria & Comércio, 26 ago. 1994]

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