Vultos esquecidos nos espreitam nas ruas

Praças, ruas, avenidas. Antigamente, os nomes surgiam naturalmente. Na pequena cidade, havia a Rua do Poço, a Praça da Matriz, o Largo do Chafariz. Os nomes saíam da boca do povo, dos habitantes que pisavam o pedaço de chão que precisavam identificar. Nomes, portanto, que tinham uma relação próxima, direta, com o dia-a-dia. Mas um dia descobriram que poderiam homenagear alguém atribuindo seu nome a algum local público. Hoje, boa parte dos projetos que tramitam em algumas câmaras municipais é dedicada à denominação de logradouros. Não raro, constituem homenagem a bases eleitorais…

Mas é verdade que muitas celebridades, nacionais ou locais, tiveram seus nomes merecidamente perpetuados nas nossas ruas. Nomes da história, homens destacados na política, na administração pública, nas artes. Heróis nacionais, homens de armas ou de religião.

MONUMENTOS

Por vezes, a homenagem é diferente: um monumento em praça pública. Vultos hieráticos nos contemplam, de altos pedestais, nas nossas praças. Se foram eles condenados a dirigir à população – quase sempre indiferente – seus olhares eternos, poucos, entretanto, param para considerá-los. Em muitas ocasiões, mais do que uma homenagem, seus nomes foram usados em favor da propaganda ideológica ou política. A República foi pródiga em exaltar publicamente seus expoentes, mitificando-os. Até nossa rua da Imperatriz virou XV de Novembro – o nome original, aliás, também fora trocado em honra da Imperatriz.

Numa mistura de homens celebérrimos com gente saída sabe-se lá de onde, rodeiam-nos pela cidade nomes que a maioria, infelizmente, desconhece. Às vezes é mesmo difícil entender porque certos nomes estão, inexplicavelmente, ornando as placas que identificam os lugares públicos. Por outro lado, o apego às raízes históricas não anda lá tão grande.

Um bom exemplo na capital paranaense é a Praça Tiradentes. No coração da cidade, a praça leva o nome de um personagem feito muito mais do mito fabricado em torno dele do que da realidade. Lá está uma imponente estátua do alferes, como sempre carregando vasta cabeleira, num flagrante erro histórico para assegurar-lhe ar de “cristo”.

Do outro lado, o “Marechal de Ferro”. Fazendo triângulo com eles, uma grande escultura representando Benjamin Constant Botelho de Magalhães – “fundador da República”, lembra a placa no monumento. E há mais um personagem imortalizado no local: o ex-presidente Getúlio Vargas – outro homem mitificado –, cujo nome não falta em nenhuma cidade brasileira, identificando algum logradouro.

DESCONHECIMENTO

O povo passa, sem prestar muita atenção nos heróis republicanos. Um jovem casal, aproveitando uma ensolarada tarde de domingo, namora aos pés de uma das celebridades. Tanto ele (Fábio Muranaka) quanto ela (Patrícia Cristina de Oliveira) têm segundo grau completo – ambos estão se preparando para o vestibular. Nenhum deles sabe definir quem foi Benjamin Constant. Fábio argumenta: “Eu acho que as pessoas deveriam ter consciência, um pouco mais de conhecimento sobre esses monumentos. A história do Brasil não é divulgada como deveria ser. Às vezes, as pessoas conhecem mais da história mundial do que da nossa própria história. Eu tenho mais conhecimento sobre a história de Roma, do Egito Antigo, do que da História do Brasil.”

Davi Santana da Costa, com mais dois amigos, observava, curioso, a estátua do Barão do rio Branco na Praça Generoso Marques. Embora tenha lido o nome do Barão na placa do monumento, diz que não conseguiu “descobrir quem é o homem”. Mas gostou do monumento, opinando: “Como arte, é bonito”.

Moradora da Praça Generoso Marques há mais de 20 anos, Helen Antunes Malucelli, entretanto, não sabe quem foi Marques, nem o Barão do Rio Branco, que vigia o lugar do alto de seu merecido pedestal. Vários freqüentadores da praça foram incapazes de dizer quem foi o personagem que lhe dá o nome. O aposentado Francisco Cardoso foi dos poucos que arriscaram: “O Generoso Marques foi o primeiro governador do Paraná”, e “José Borges de Macedo” – que denomina a praça ao lado – “foi o primeiro prefeito de Curitiba.” Dizendo-se morador da Rua Leopoldo Belzac, arrisca-se também a afirmar que Belzac “foi um delegado”, sem demonstrar muita certeza. E diz que, se pudesse, colocaria na rua onde mora o nome de sua terra: Tijucas do Sul.

PREFEITO OU GOVERNADOR?

O agricultor Constantino Santos, 80 anos, por sua vez, diz que Generoso Marques foi “um grande prefeito de Curitiba”. Embora dizendo não se lembrar de quem foi Benjamin Constant, acerta (ufa!) ao dizer que o “Marechal de Ferro” foi Floriano Peixoto. Seu genro Érico Szpoganicz tenta explicar quem foi Constant, mas confunde-o com o Barão do Rio Branco: “Foi um político nacional, do Rio de Janeiro, foi do corpo diplomático e atuou na criação do território do Acre.” Morando há pouco tempo na Rua Desembargador Motta, também desconhece quem foi o dito cujo. Mirian Spoganicz, por seu lado, contando ser moradora da Rua Frei Caneca, em Florianópolis, diz que o Frei merece a homenagem que lhe foi dada, pois “ajudou muito as missões, a educação, no tempo da colonização”…

Diante desse desconhecimento (quase) geral, um dia houve alguém que resolveu contar a história de nossas ruas. A escritora Maria Nicolas – já falecida – publicou, em 1967, a obra “Almas das Ruas”. O nome do livro indica bem o espírito com o qual foi feito. A autora pesquisou afincadamente a história daqueles que deram seus nomes aos logradouros da cidade. Curiosamente, constatou que alguns personagens eram mesmo desconhecidos, nada – ou muito pouco – encontrando sobre eles. Perto de 30% dos homenageados eram pessoas “comuns”, gente “anônima” que hoje está nas placas de ruas.

“Almas das Ruas” pode ser consultado – nas bibliotecas, pois o livro está esgotado – por quem desejar saber o porquê dos nomes das ruas. Mas, é claro, a obra já está pedindo atualização – a edição mais recente é do início da década de 80.

“SUBCULTURA”

João Dedeus Freitas Neto, jornalista que foi diretor da Imprensa Oficial e que apoiou a publicação do livro, na sua primeira edição, comenta o descaso das pessoas em relação à história revelada pelas ruas e monumentos: “Hoje em dia, não se cultuam os símbolos da pátria; isso faz parte da nossa subcultura.” Ele defende que seria preciso “voltar a ter no ensino de primeiro grau uma matéria chamada Educação Moral e Cívica”. Freitas Neto critica também a falta de uma disciplina, nos currículos escolares, voltada ao estudo da história estadual e local. “A história das ruas é a história da cidade”, arremata.

Em algumas poucas cidades brasileiras, as placas das ruas trazem um brevíssimo histórico do homenageado. Boa idéia, que ao menos atiça a curiosidade de quem lê. Evidentemente, não se pode pretender que todo mundo conheça a história de todos os personagens que nomeiam as centenas de avenidas, ruas e praças da cidade. Mas certamente se poderia, em primeiro lugar, homenagear quem de fato merece. Personalidades que digam algo à alma da gente. Vultos cujos exemplos sejam realmente dignos de análise. Personagens que fizeram nossa história. Além disso, a indicação, nas placas das ruas, de algum dado interessante sobre o personagem lembraria aos passantes sua relação com “a alma” do local.

A propósito, quem foi mesmo aquela celebridade que dá nome à rua onde você mora?

[BOX]

As ruas de Maria Nicolas

Freitas Neto conta que Maria Nicolas, autora de “Almas das Ruas” era “uma pessoa muito interessante. Filha de um francês (o pai foi contra-regra do Guaíra), era negra e foi professora e pintora primitivista.” Assim escreveu ela na introdução de seu livro:

“Como era natural no princípio, Curitiba ia se arrastando vagarosamente, ao contrário dos nossos dias. As poucas ruas que surgiam recebiam nomes dados pelo povo de acordo com as suas características. Assim, tivemos: Rua da Flores, em homenagens à grande quantidade de rosas bravas e madressilvas em eterna florescência, em toda sua extensão, da Av. Luiz Xavier, até a Rua Ubaldino do Amaral, pois daí para adiante gozava a denominação de Rua São Paulo; o Largo da Ponte, a Praça Zacarias, o Largo da Misericórdia, a Praça Ruy Barbosa etc.. Eram denominações lógicas. Mas com a vinda de D. Pedro ao Paraná, o então Presidente da Província, Cons. Manoel Pinto de Souza Dantas Filho, a fim de se tornar agradável a S. M., incluiu no programa de festejos o batismo oficial de logradouros públicos. Era o primeiro gesto de agrado aos soberanos. Destarte, o Largo da Matriz passou a Praça D. Pedro II; a Rua do Comércio, assim chamada por ser na realidade a que apresentava maior movimento comercial, passou a Rua do Imperador; o Largo Lobo de Moura, ilustre magistrado, Largo Thereza Christina.

“Embora as rosas e madressilvas fossem desaparecendo, à medida em que iam construindo moradias, o nome de Rua das Flores continuava, mas devido à augusta visita, o nome foi mudado para rua da Imperatriz. E esse vício de mudar de denominações de ruas, provando a falta de espírito conservador, veio até nossos dias. Ao proclamar-se a República, o povo sem espírito tradicionalista imediatamente fez desaparecerem os nomes dos ex-imperadores com o fito de apagar tudo quanto lembrasse o imperador, sem que lhe viesse a mente que D. Pedro foi um governante dotado de extrema bondade, amigo das Artes e da Cultura, protetor de artistas, amparo de viúvas e órfãos e que recebeu com grande alegria as leis a favor dos escravos. De nada se lembraram, e caíram por terra os ilustres nomes de gente humana e boa, enquanto, até o momento, nomes sem expressão alguma aí estão a imortalizar pessoas sem mérito algum, porquanto achamos que, para um indivíduo ser imortalizado, é necessário que, pelo menos, haja praticado um ato de desprendimento em benefício de outrem, de sincero amor ao próximo; que tenha pelo menos uma vida conhecida do público, na pior hipótese, mas que seja apontado pelo povo como merecedor dessa gratidão.”

[Jornal Indústria & Comércio, 6 jul. 1996]

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