No dia 18 de agosto último, a Federação das Indústrias do Paraná completou 50 anos. Durante as cerimônias comemorativas do cinqüentenário, houve uma especial homenagem a um dos fundadores e primeiro presidente da entidade, Heitor Stockler de França. Sua personalidade unia qualidades tão diferentes quanto as de poeta e industrial bem-sucedido. Poucos paranaenses têm na sua genealogia tão grande número de nomes ilustres quanto os descendentes de Heitor Stockler de França. As origens da família chegam a remontar a Martin Afonso de Souza.
Quem conheceu Heitor Stockler de França testemunha: ele era dessas raras pessoas que se julgam sempre felizes. Sua poesia também deixa transparecer essa alegria de viver, como se vê no soneto “Dentro de um grande sonho”:
Alma simples de poeta e coração sem jaça,
Nasci para ser bom, livre de preconceito,
Vivendo para amar na beleza e na graça
Tudo que é natural e tudo que é perfeito.
E sinto este meu ser já de tal forma afeito
A esse fino prazer, licor de azúlea taça,
Que me julgo feliz, glorioso e satisfeito
Na artística emoção que todo me repassa.
Embora a figurar na áurea legião da rima,
Não vislumbro fulgor no estro que me anima,
Nem sei se há vibração nos versos que componho.
E assim, tal como a névoa errante pela altura
Infinita do Céu, a mim se me afigura
Que passo por aqui dentro de um grande sonho!
Com alma de poeta, estava “sempre atrás de algum ideal”, como ele próprio escreve no soneto “Mais um ano”:
Mais um ano deflui e noto, se me amplia
O vinco natural dessa rude passagem.
Com esperança imensa a vida se inicia,
Mas é incógnita, sempre, o termo de uma viagem!
É certo que envelheço e passo; todavia,
Se meu físico cede e rola na voragem,
Tenho a alma intacta e nova, ainda, e quem diria?
Sempre atrás dum ideal – a fúlgida miragem!…
Parece-me que tudo a que tenho aspirado,
No lento decorrer desta jornada de anos,
De canseiras sem tréguas e vagos desenganos,
Com armadura de aço e tal como um Cruzado,
A passos vou vencendo e, pelo algo que fiz,
Arrogo-me o direito a me julgar feliz!…
Heitor Stockler de França nasceu na cidade de Palmeira, a cinco de novembro de 1888. Seus pais eram Leandrina Marcondes Ribas Stockler de França e o capitão João de Araújo França. O pai possuía engenho de erva-mate e era também comerciante, agricultor e pecuarista. Heitor herdou do pai o gosto pelo comércio. Desde adolescente, trabalhou em casas comerciais, acabando por abrir, em 1914, já em Curitiba, para onde se transferira com 18 anos, a “Livraria Mundial”.
Seu estabelecimento reunia tudo aquilo que ele apreciava e em que se destacou: o comércio (de livros), a indústria (gráfica) e as letras… A casa tornou-se um ponto de encontro da intelectualidade curitibana.
POESIA
Como escritor, Heitor destacou-se na poesia, com vários livros publicados, tendo pertencido à Academia Paranaense de Letras. Dedicando-se também ao jornalismo, escreveu no Diário da Tarde, onde manteve, sucessivamente, colunas diárias: primeiro, a seção “As Quartas”, depois, “Motivos da Cidade” e, mais tarde, “Tudo Motivo”. Por fim, escreveu mais de cem crônicas naquele diário, sob o título “Variações do Cotidiano”.
Na Rádio PRB-2, lia diariamente suas crônicas. E foi ele o introdutor do radioteatro no Brasil: dramatizou no rádio, juntamente com Sá Barreto e Correia Júnior, “A Ceia dos Cardeais”, de Júlio Dantas.
FIEP E SESI
Mas suas atividades foram diversificadas. Como industrial e comerciante, foi um dos fundadores da Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Fiep), sendo eleito seu primeiro presidente, cargo que ocupou ininterruptamente por 14 anos. Foi também, junto com Roberto Simonsen, Euvaldo Lodi, Morgan Dias de Figueiredo, Armando de Arruda Pereira e Gastão de Brito, fundador do Serviço Social da Indústria (Sesi).
Uma estirpe se torna ilustre pela presença, em gerações sucessivas, de pessoas de destaque, sobretudo na defesa interessada do bem comum. Os nomes de Heitor Stockler de França e de sua esposa Brasília Taborda Ribas de França estão associados a ascendentes de importância: Martin Afonso de Souza, Baltazar Carrasco dos Reis, Inácio Lustosa e Pretextato Taborda Ribas, por exemplo.
D. PEDRO II
O avô materno de Heitor, Antônio Pereira Bueno Stockler, combateu durante os cinco anos da guerra do Paraguai, tendo recebido do imperador D. Pedro II as condecorações de Cavaleiro da Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo, por sua exemplar dedicação em inúmeras batalhas daquela guerra.
Davi Carneiro, em sua obra “D. Pedro II na Província do Paraná” conta um fato interessante a seu respeito: “Na Palmeira, ficou uma tradição curiosa, relativa ao primeiro almoço servido a Suas Majestades Imperiais. Querendo a comissão dar prova de apreço aos imperiais visitantes, nomeou o capitão Stockler, veterano da campanha do Paraguai, para ser o copeiro de Suas Majestades. O imperador, porém, quando deu com o servidor tendo ao peito tantas medalhas de campanha, não consentiu que ele o servisse, e fê-lo sentar-se ao seu lado, e junto à senhora Baronesa do Tibagi.”
MONARQUIA
Até hoje os descendentes de Heitor Stockler de França têm relações com a família imperial brasileira. Seu neto Mozart Heitor Amorim França é presidente da Frente Monarquista D. Pedro II. Durante a campanha pela monarquia no plebiscito do ano passado, a família promoveu uma recepção ao príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança. A festa foi na bela casa onde viveu Heitor, hoje habitada por sua filha Marita. A casa, na rua Marechal Floriano Peixoto, 458, tem mais de 100 anos: foi construída em 1894 pelo pai de Brasília, João Lourenço Taborda Ribas.
Liandra, mãe de Heitor, incutiu no filho o espírito religioso. Ela costumava rezar o terço com a família. Mas a principal devoção de Heitor era o Espírito Santo. Na sala de estar de sua residência, ainda hoje se vê uma bandeira do Divino, que ele recomendou aos filhos que nunca fosse tirada de lá. Na festa do Divino, a família recebia em casa os participantes da procissão, que levavam a bandeira vermelha em honra ao Espírito Santo e a branca, representando a Santíssima Trindade.
QUALIDADES
Homem feliz como era, Heitor proibia em sua casa certos assuntos mal-vindos. Ele não permitia, por exemplo, que se falasse mal de outras pessoas em sua presença. E dizia aos filhos: “Todos temos qualidades e defeitos. Se devemos nos lembrar de alguém, lembremos suas qualidades.”
Heitor e Brasília tiveram seis filhos: Marita, Glycínia, Ariane, Ildefonso, Mozart e Apollo. Quase todos, como o pai, com dons para as letras. Doze netos e 21 bisnetos também descendem desse paranaense cuja história se relaciona a tantos nomes ilustres da história do Estado e do país. Homem que, com sua alma generosa, soube ser exemplo de uma felicidade simples, definida em seus versos “Burguês, Boêmio ou Artista”:
Sou burguês,
Sou boêmio,
E sou artista.
Tirar-me o privilégio
Desses dons de ventura da existência,
É um sacrilégio,
É um crime, até violência.
Na burguesia eu vivo como artista,
Entre artistas não passo de um burguês…
Entretanto, não sou mais que um boêmio,
Ou artista, ou burguês, entre os mortais.
No meio dos artistas, sou um poeta,
Na roda dos burgueses – honradez,
E na escala dos boêmios – ignoto!…
Mas para mim, tudo isso é grande prêmio,
Porque, pelo que penso, sinto e noto,
Não sou boêmio, burguês e nem artista…
– Sou um homem feliz e nada mais!
(olho1) “Tal como a névoa errante pela altura infinita do Céu, a mim se me afigura que passo por aqui dentro de um grande sonho!”
(olho2) Desde adolescente, trabalhou em casas comerciais, acabando por abrir, em 1914, em Curitiba, a “Livraria Mundial”
(olho3) Heitor foi o introdutor do radioteatro no Brasil: dramatizou no rádio “A Ceia dos Cardeais”, de Júlio Dantas
(olho4) Na sala de estar de sua residência, Heitor mantinha uma bandeira do Divino, que recomendou aos filhos que nunca fosse tirada de lá
(legenda1) Heitor declamando versos para sua esposa Brasília numa noite de Natal
(legenda2) Antônio Pereira Bueno Stockler, avô materno de Heitor que lutou na guerra do Paraguai
(legenda3) Maria Catarina e João Lourenço Taborda Ribas, pais de Brasília
(legenda4) Heitor (5º em pé) no Passeio Público em 1920, na Festa Literária da Primavera, com personalidades da intelectualidade paranaense, entre as quais Romário Martins (5ڊ sentado)
(legenda5) A casa da Rua Marechal Floriano
(legenda6) Os filhos de Heitor (Mozart, Apollo, Ildefonso, Glycínia, Marita e Ariane) no final da década de 50
(legenda7) Alguns filhos de Heitor: Ariane (ao lado do esposo Hely Marés de Souza), Marita e Apollo (ao lado da esposa Walderez de Araújo França)
[Jornal Indústria & Comércio, Curitiba, 31-08-94]